quinta-feira, 7 de março de 2013

Isto que estás ouvindo, já não sou eu


Há algum tempo escrevi sobre usar óculos, de como se leva um tanto pra se adaptar, e de como quase tudo correu bem na longa adaptação que os anos trouxeram depois de mudarmos para o estrangeiro.



Quem quiser venha ver 
Mas só um de cada vez 
Não queremos nossos jacarés 
Tropeçando em vocês 
(Mosaico de Ravena)

- Oi, bom dia. Queria saber se vocês estão aceitando matrículas no meio do semestre. Acabei de chegar na cidade, tem os vestibulares pela frente e...
- Sim, aceitamos. Mas você não se enganou? Não é a escola ao lado que você procura?

Essa foi uma das primeiras vezes que saía de casa, poucos dias depois de ter chegado em Campinas. Era 2002 e as vésperas do vestibular. Tentava não esquecer que ele ainda me rondava.
Não, não era a escola ao lado. Aquele dia saí de casa de bermuda e chinelos, e no julgamento daquela senhorinha eu tinha errado de porta, da pública para a particular.

Ao menos não tínhamos chegado em Campinas armados, na defensiva. Curiosamente, em casa, em nenhum momento falamos em termos de preconceitos, de preocupações que deveríamos ter em relação as pessoas, mas tão somente em oportunidades. Afinal, não estaria a novidade nos nossos olhos?

Mas assim como o tempo traz as adaptações necessárias, foi irônico perceber que desse mesmo tempo e dessas mesmas adaptações vieram situações inusitadas, dignas de uma pesquisa antropológica:

- Nossa, mas que longe!


 
- Mas por que você veio pra cá? Não tem faculdade lá?

- E como é lá, assim... o que tem lá? (repare que não perguntou como é a cidade lá) 


- Ah, como eu queria conhecer o nordeste! Me conta, você mora perto da praia?!

- Paraná?
- Não, Pará.
- Tem Pará também? Achei que só tinha Paraná. Onde fica?


A culpa é da mentalidade
Criada sobre a região
Por que é que tanta gente teme?
Norte não é com M
(Mosaico de Ravena)

Não chegar na defensiva foi bom. O despreparo para o inusitado é que cansou um pouco. Não, cansou bastante. E esse cansaço me levou a uma infeliz reação, que durou algum tempo: qualquer comentário ou pergunta inusitada logo me armavam de grosserias ou mesmo de uma sutil rejeição. E lá se ia por água abaixo qualquer investigação antropológica. Um tempo razoável se passou entre as pedras na mão e percepção de que vivia oportunidades perdidas de ótimas conversas.
Quem me conhece sabe da dificuldade que tenho de manter a concentração, o foco. E quase vinte anos usando óculos, dependo muito deles pra ter certeza do que vejo. Mas em uma noite, recentemente, numa conversa-de-despedida, observei algo novo: tirei-os rapidamente e tive o foco reduzido a um pequeno círculo. Puxa vida, que experiência interessante!

Não foi fácil ficar sem os óculos, admito, pois foi uma sensação estranha (como tudo que é novo) de não poder ver mais nada além daquele um metro de distância, numa pequena área em que eu só via o rosto da outra pessoa. Mas dessa experiência de ficar sem as lentes pro mundo, mesmo que por alguns instantes, me permitiram encontrar a metáfora do que foi deixar as pedras que carreguei.

Devagar, com tempo, precisei encontrar outro foco, ver de outros ângulos, e perceber que eu fazia parte do privilégio de poucos em poder dizer como era lá, e como era aqui. Mais do que isso, comecei a perceber como as nossas fontes diárias de informação só nos diziam muito menos do que realmente é: São Paulo = trânsito e shoppings; Rio de Janeiro = favelas e praias. Não, a televisão brasileira nunca ajudou ninguém a conhecer o próprio país.


Não sou brasileiro, 
Não sou estrangeiro, 
Não sou brasileiro, 
Não sou estrangeiro. 
Não sou de nenhum lugar, 
Sou de lugar nenhum. 
(Titãs)



Mas me desarmei, e o Mosaico de Ravena já nem é mais tão trilha sonora assim. A convivência com gente de todo lugar e as várias casas em que pude morar me ensinaram, na prática, o que significa alteridade.

Ainda sinto fortemente que vim de um país que se chama Pará. Mas isso só vou saber se é verdade daqui algum tempo. E já nem creio que tenha vivido no estrangeiro.


Esto que estás oyendo
ya no soy yo,
es el eco, del eco, del eco
de un sentimiento;
(Jorge Drexler)


Dentro dessa razoável caminhada, daqui pouco mais de 48h, o destino vai virar origem de novo e, enfim, vou avançar a uma nova fase, vou voltar à minha Belém. A conclusão desta? Bem, o que nos finda, afinal?


Eduardo

Acesse Mosaico de Ravena, "Belém, Pará, Brasil" aqui
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